O Benjamim Guimarães e a Comissão do Vale do São Francisco

 

            O artigo 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição brasileira de 1946 determinou que o governo federal ficava obrigado, durante o prazo de 20 anos, a traçar e executar um plano de aproveitamento total das possibilidades econômicas do Rio São Francisco e afluentes, no qual aplicará, anualmente, quantia não inferior a 1% de suas rendas tributárias.

            Com a finalidade de elaborar e executar o plano de aproveitamento da região do São Francisco e afluentes, foi criada pela Lei no 541, de 15-12-1948, a Comissão do Vale do São Francisco (C.V.S.F.), entidade estatal diretamente subordinada ao presidente da República. Somente sete anos depois, o plano geral para o Vale do São Francisco foi aprovado pelo Congresso Nacional nos termos da Lei no 2.599, de 13‑9‑1955.

            As atribuições da Comissão do Vale do São Francisco eram excessivamente amplas e compreendiam estudos globais sobre a bacia hidrográfica; construção de centrais elétricas; execução de irrigação; saneamento e drenagem de terras agrícolas; realização de serviços de educação, de ensino profissional, de saúde e de assistência; efetivação de trabalhos destinados ao desenvolvimento da produção agropecuária e da industrial.

            No que diz respeito especificamente à navegação, competiam à Comissão: a ampliação, modernização e padronização do sistema fluvial de transporte, com a organização de uma sociedade de economia mista para a exploração do tráfego fluvial; o melhoramento das condições de navegabilidade do São Francisco e dos afluentes; a regularização do regime fluvial pela construção de reservatórios de acumulação.

Através do Decreto no 33.687, de 27-8-1953, o presidente da República declarou de utilidade pública, para efeito de desapropriação, o acervo, na parte relativa à navegação, da Companhia Indústria e Viação de Pirapora. Os bens a serem desapropriados destinavam-se à organização de uma sociedade de economia mista para ampliação, modernização, padronização e exploração do tráfego fluvial do São Francisco. A Comissão do Vale do São Francisco ficou autorizada a promover a desapropriação, em caráter de urgência. O pagamento da desapropriação, no exercício de 1953, deveria ser efetivado com a quantia prevista na Lei no 1.757, de 10‑12‑1952, que fixou a despesa da União para aquele exercício. Nos exercícios seguintes, os dispêndios seriam feitos por conta das dotações oriundas do artigo 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

O diretor-superintendente da Comissão do Vale do São Francisco, acolhendo os pareceres dos órgãos competentes daquela Comissão, aprovou a avaliação do patrimônio da Companhia Indústria e Viação de Pirapora, na parte relativa à navegação, no montante de Cr$ 27.164.289,30 (vinte e sete milhões cento e sessenta e quatro mil duzentos e oitenta e nove cruzeiros e trinta centavos).

Como o Decreto no 33.687, de 1953, autorizara a Comissão do Vale do São Francisco a promover a desapropriação do acervo da Companhia Indústria e Viação de Pirapora, na parte relativa à navegação, e uma vez que essa companhia estava de acordo em receber a título de indenização pelos bens expropriados a importância de Cr$ 27.164.289,30, faltava as partes interessadas firmarem o indispensável instrumento contratual. Por isso, a União Federal, por intermédio da Comissão do Vale do São Francisco, e a Companhia Indústria e Viação de Pirapora, esta representada pelo diretor-presidente, José Gonçalves de Sá, assinaram, em 28‑10‑1953, a escritura de acordo para execução amigável de desapropriação e transferência de domínio.

Pelo contrato de 28‑10‑1953, a Companhia Indústria e Viação de Pirapora cedia e transferia, em caráter definitivo, à Comissão do Vale do São Francisco a posse e o domínio dos bens expropriados.

Além do vapor Benjamim Guimarães, os bens da Companhia Indústria e Viação de Pirapora, da parte relativa à navegação, eram os seguintes: a) vapores São Francisco, São Salvador, Otávio Carneiro, Sertanejo, Iguaçu, Coronel Ramos, Baleia, Francisco Bispo e Bahia; b) alvarengas Doze de Agosto, Santa Maria, Santa Luzia e Mineira; c) chatas Rio Verde, Mineiro, Tropeiro, Rio Grande e Rio Pardo.

Foram também desapropriados um avião para quatro pessoas, dois terrenos na Avenida São Francisco, em frente ao cais da cidade de Pirapora (MG), máquinas e ferramentas das oficinas.

Por conta da indenização no valor de Cr$ 27.164.289,30, a Companhia Indústria e Viação de Pirapora recebeu, na assinatura do contrato, a importância de Cr$ 20.000.000,00, mediante um cheque visado, emitido contra o Banco do Brasil. Quanto aos restantes Cr$ 7.164.289,30, ficou acordado o pagamento para 1954, após a conferência de todo o patrimônio expropriado e no ato da definitiva entrega dos bens à Comissão do Vale do São Francisco, ocasião em que a Companhia Indústria e Viação de Pirapora daria quitação, mediante escritura pública.

A Companhia Indústria e Viação de Pirapora declarou que transferia para a União Federal todo direito, ação, domínio e servidões ativas que possuía sobre os bens, para que a União Federal os considerasse seus e em sua posse a partir de então. Comprometeu-se a entregá-los em perfeito estado de conservação e funcionamento, continuando sob a responsabilidade e a manutenção daquela companhia até que ocorresse o efetivo recebimento. Entretanto, a partir de 28‑10‑1953 os bens passariam ao pleno domínio, uso e gozo da União Federal, como parte integrante do patrimônio da Comissão do Vale do São Francisco.

O Tribunal Marítimo, órgão vinculado ao Ministério da Marinha, certificou em 24‑9‑1953 que no 1o livro de Registro Geral da Propriedade Marítima, a folha 226, constava o registro no 1.769, de 14‑3‑1945, referente ao navio a vapor Benjamim Guimarães, inscrito sob no 37 na Capitania Fluvial dos Portos do São Francisco, em Pirapora (MG), construído por James Rees Sons & Co., nos Estados Unidos da América do Norte, em 1913.

Conforme contratado em 28-10-1953, a navegação a vapor do Rio São Francisco continuou a ser efetuada pela Companhia Indústria e Viação de Pirapora. Em 29 de setembro de 1954, esta companhia e a União Federal (Comissão do Vale do São Francisco), representadas, respectivamente, por José Gonçalves de Sá e Paulo Peltier de Queiroz, firmaram escritura para execução amigável de desapropriação, transferência de domínio e administração provisória do acervo desapropriado, cujas cláusulas principais damos a seguir.

Enquanto não estivesse terminada a constituição da Companhia de Navegação do São Francisco-FRANAVE, empresa de economia mista a ser organizada com os bens desapropriados, a Companhia Indústria e Viação de Pirapora se comprometia a manter em funcionamento normal e regular o trafego fluvial do São Francisco, que já vinha antes realizando, e todos os serviços acessórios e afins. Para essa finalidade, continuaria a administrar o acervo já desapropriado. A Comissão do Vale do São Francisco teria o direito de fiscalizar aquela companhia, seja no que se referia à manutenção e conservação dos bens e à execução dos serviços de transporte, seja no que envolvia o movimento contábil de receita e despesa.

Os dispêndios com a navegação seriam custeados pela própria renda oriunda do transporte de passageiros e cargas. Na hipótese de a receita ser menor do que a despesa, os cofres públicos arcariam com o déficit. A finalidade primeira do governo federal era a manutenção do tráfego fluvial em benefício das populações e da economia da região do Vale do São Francisco. Para realizar esse objetivo, a União se comprometeu a efetuar os pagamentos necessários para manter a navegação em pleno funcionamento, a fim de não permitir que eventual falta de recursos financeiros da companhia desapropriada viesse a prejudicar a perfeita administração dos serviços da navegação são-franciscana.

Em 6‑11‑1956, a Comissão do Vale do São Francisco designou Antônio Bittencourt Mariani, Fernando Sebastião Pereira de Faria e Renato Mascarenhas de Souza, funcionários daquele Órgão, para formarem a comissão incumbida de receber o patrimônio completo constituído dos navios e demais embarcações, dos imóveis, do almoxarifado e dos materiais fixos. Posteriormente, em 9‑1‑1957, nomeou Murilo Monjardim Aires para participar da mesma comissão. É claro que o vapor Benjamim Guimarães estava incluído nesse recebimento.

Em 22‑1‑1957, o diretor-superintendente da Comissão do Vale do São Francisco, após a autorização do presidente da República constante do processo PR 62.612-56, indicou, a contar de 1º‑1‑1957, Enrique Brasil Simoni, para o cargo de diretor-gerente do Serviço de Navegação da Comissão do Vale do São Francisco, com a finalidade de administrar o transporte fluvial relacionado ao acervo da Companhia Indústria e Viação de Pirapora.

Considerando que não localizamos o documento representativo do recebimento das embarcações pela Comissão do Vale do São Francisco, não nos é possível afirmar em que data o vapor Benjamim Guimarães passou a ser, efetivamente, administrado pelo governo federal por meio do Serviço de Navegação daquela Comissão.

Entretanto, é certo que a Comissão do Vale do São Francisco, em decorrência da desapropriação, assumiu todos os encargos de manutenção do acervo recebido e realizou a navegação do rio com o material flutuante.

Quando em 24 de janeiro de 1963 foi constituída a Companhia de Navegação do São Francisco-FRANAVE, o Serviço de Navegação da Comissão do Vale do São Francisco continuava a operar os vapores antes pertencentes à Companhia Indústria e Viação de Pirapora, inclusive o navio Benjamim Guimarães.

 

                                   Fernando da Matta Machado

Artigo publicado no jornal CORRENTE, de Pirapora, Minas Gerais, ano XXVII, no 1.051, de 6 de agosto de 2004. Edição especial em homenagem à volta do vapor Benjamim Guimarães ao São Francisco.

 

 

 

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Rio de Janeiro (RJ), 21 de agosto de 2008